História do Isolamento: mudanças entre as edições

De Memorial Hanseníase
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Entre os anos de 1923 e 1986, com fulcro no Decreto Presidencial 16.300/1923 e na Lei nº 610/1949, o Brasil implementou uma política pública de saúde baseada no isolamento compulsório e na separação de filhos de pessoas acometidas pela hanseníase (Mycobacterium leprae). Essa política teve a União Federal como ente orientador e coordenador de âmbito nacional e os estados federados como executores. (PERUZZO et alii, 2021)


O isolamento era realizado com base em critérios da autoridade sanitária e se destinava também aos enfermos que, nos termos da lei, não podiam obter os recursos necessários à própria subsistência ou que eram portadores daquilo que a lei denominava de “estigmas impressionantes de lepra”. Em outros termos, o isolamento e a separação de pais e filhos ocorreu também em relação às pessoas já curadas, além de ter um viés de evidente estigmatização também da pobreza.
Somente em 1975, por intermédio do Decreto Presidencial 76.078, foi dada nova denominação à Divisão Nacional de Lepra e à Companhia Nacional Contra a Lepra, passando a ser, respectivamente, denominadas: Divisão Nacional de Dermatologia Sanitária e Campanha Nacional Contra a Hanseníase.
Em seguida, no ano de 1976, foi publicada a Portaria n. 165 do Ministério da Saúde que, além de abolir o termo “lepra” nos documentos oficiais, garantiu a oferta de mecanismos para diagnóstico e tratamento adequados em serviços públicos de saúde (e não mais em leprosários), com o objetivo de “[...] eliminar falsos conceitos relativos à alta contagiosidade da doença, à sua incurabilidade e à compulsoriedade da internação do doente”, tendo em conta que a hanseníase não se transmite por simples contato, sendo necessário contato permanente, predisposição para a doença e baixa imunidade. Além disso, a doença é totalmente curável, podendo não deixar sequela alguma, se diagnosticada precocemente e tratada de forma adequada.
O isolamento dos enfermos e a separação de pais e filhos foram caracterizados por episódios de tortura, privação ilegal da liberdade, abuso sexual, castigos físicos e negligência estatal em relação à readaptação das pessoas afetadas para que pudessem viver com autonomia. Tudo isso está registrado e documentado em documentos oficiais do Estado e no material audiovisual que integra a segunda parte deste relatório. Tais práticas configuram graves violações a direitos humanos, tendo sido responsáveis por danos físicos, mentais, emocionais, materiais e sociais que impactaram diretamente nos projetos de vida e deixaram lesões permanentes nos dois grupos de vítimas (pessoas afetadas pela doença e filhos separados) que, em interação com as barreiras sociais, configuram deficiência ao impedirem o exercício da cidadania, o que também se comprova pela narrativa das vítimas no material audiovisual apresentado neste relatório.
A deficiência, dessa maneira, é uma marca presente tanto nas pessoas afetadas pela doença e que não tiveram acesso a um processo de reabilitação, como também nos filhos que foram separados e submetidos à tortura e o abuso sexual, violando os deveres de reabilitação e superação do estigma assumidos internacionalmente pelo Brasil por ocasião da incorporação da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e também por ocasião da incorporação da Convenção Internacional contra a Tortura.
A deficiência, aliás, considerando o modelo biopsicossocial de deficiência, assume múltiplas características nesses grupos.
Nas pessoas atingidas pela doença, a não reabilitação é um fator que, em interação com as barreiras físicas, impede o exercício da cidadania por falta de acessibilidade. Além disso, considerando que ainda hoje o Estado brasileiro não conseguiu implementar uma política de eliminação desse estigma, o que poderia ser feito, por exemplo, através de campanhas públicas eficientes e discussão dessa história na formação de profissionais da saúde e do sistema de justiça, pessoas curadas ou em tratamento (e aptas para atividades laborais) enfrentam dificuldades para encontrar trabalho, muito por conta do preconceito que a sociedade ainda alimenta em relação à doença. Nessa mesma linha, é muito comum que mulheres em tratamento para hanseníase não consigam afastamento assistencial do trabalho e, do mesmo modo, não consigam emprego. Tal prática evidencia um preconceito enraizado e uma dimensão interseccional do problema (Cf. Peruzzo; Garcia, 2020; Peruzzo; Casoni, 2021), pois, por causa do estigma, as mulheres diagnosticadas com a doença normalmente são abandonadas pelos companheiros, assumindo sozinhas os cuidados da casa e dos filhos.
Do mesmo modo, em relação aos filhos separados e submetidos a tortura e abuso sexual, as lesões suportadas por eles vão desde surdez decorrente da tortura até lesões psíquicas ou psiquiátricas, perpetuando um sofrimento intenso nas vítimas. Não bastassem as sequelas físicas e emocionais diretamente decorrentes de tal política estatal, o sofrimento é majorado pela ausência de perspectivas de uma reparação integral, por exemplo, no âmbito do Judiciário, considerando que, desde 2019, os Tribunais Superiores no Brasil vêm consolidando o entendimento de que a pretensão de reparação dos filhos separados compulsoriamente de seus pais, com todos os danos decorrentes da separação, estaria prescrita.
Em outros termos, nas pessoas atingidas pela doença, a deficiência é consequência tanto do diagnóstico tardio que desencadeia lesões neurais, como dos métodos equivocados de tratamento (como o antigo isolamento obrigatório em “leprosários”), das torturas sofridas ou, ainda, da falta de reabilitação, o que acarretou lesões que desencadearam “impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, que, em interação com diversas barreiras, impedem sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”, conceito de deficiência da Convenção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência e da Lei Brasileira de Inclusão.
Se considerarmos que, ainda hoje, o Brasil possui altos índices de diagnóstico de hanseníase, como também considerável número de diagnóstico é realizado tardiamente e que entre agosto de 2020 e março de 2021 o Brasil ficou desabastecido da poliquimioterapia por não produzir o medicamento de forma soberana, todos os erros e danos do passado evidentemente se repetem na atualidade. Essa dependência evidencia, ainda, a importância de termos em conta o papel da cooperação internacional em direitos humanos, na medida em que problemas locais repercutem internacionalmente e vice-versa, justificando a preocupação com a ideia dos “novos direitos” (Peruzzo; Spada, 2018) e da busca global pelo acesso integral às condições básicas para uma vida digna.
Ainda hoje, como consequência do estigma social e da negligência estatal, o Brasil está entre os países com o maior número de casos da doença no planeta. Nas Américas, 93% dos casos de hanseníase são registrados no Brasil, somando 26.875 novos casos em 2017 e 28.660 novos casos em 2018, conforme apontado pela Organização Mundial da Saúde (2019).
Nos filhos separados, as principais lesões identificadas resultaram dos castigos físicos, do abuso sexual e de outros tipos de tortura sofrida nos educandários, preventórios, na rua ou em famílias substitutas para as quais foram enviados após a separação. O documentário “Filhos separados pela injustiça” (2017) é um dos materiais em audiovisual que registram essas práticas de tortura e a permanência e atualidade dos danos.
Peruzzo, P. P.; Casoni, L. F. Contribuições da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre violência contra a mulher: uma análise jurisprudencial. Revista Direito Público, v. 18, n.98, p. 94-122, 2021. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/5265. Acesso em: 27 abr. 2022.
Peruzzo, P. P.; Garcia, I. A aplicação do conceito de discriminação racial nas Recomendações Gerais e Relatórios anuais do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial da ONU. Boletim Campineiro de Geografia, v. 10, n.1, p. 241-259, 2020. Disponível em: http://agbcampinas.com.br/bcg/index.php/boletim-campineiro/article/view/454. Acesso em: 27 abr. 2022.
Peruzzo, P. P.; Spada, A. C . Novos direitos fundamentais no âmbito da Unasul: análise das agendas de Brasil e Venezuela à luz do direito à paz. Revista de Direito Internacional, v. 15, n.2 p. 339-352, 2018. Disponível em: https://www.publicacoes.uniceub.br/rdi/article/view/5060. Acesso em: 27 abr. 2022. 
Peruzzo, P. P. ., Silveira, S. M. L. ., Gonçalves, N. I. G. ., Flores, E. P. L. ., Santiago, K. T. ., Simbera, P. A. de C. ., Lima, M. A. de ., Salles, G. M. ., & Silva, L. V. C. da . (2022). Contribuição para o relatório temático da relatora especial das Nações Unidas para a eliminação da discriminação contra as pessoas atingidas pela hanseníase e seus familiares ao conselho de direitos humanos da ONU. Revista De Direitos Humanos E Desenvolvimento Social, 2, 1–31. https://doi.org/10.24220/2675-9160v2e2021a5791
=== Links interessantes: ===
http://www.morhan.org.br/sobre_hanseniase
https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/pessoa-com-deficiencia/acoes-e-programas/memorial-virtual-da-hanseniase-no-brasil

Edição atual tal como às 05h38min de 3 de maio de 2023

Entre os anos de 1923 e 1986, com fulcro no Decreto Presidencial 16.300/1923 e na Lei nº 610/1949, o Brasil implementou uma política pública de saúde baseada no isolamento compulsório e na separação de filhos de pessoas acometidas pela hanseníase (Mycobacterium leprae). Essa política teve a União Federal como ente orientador e coordenador de âmbito nacional e os estados federados como executores. (PERUZZO et alii, 2021)

O isolamento era realizado com base em critérios da autoridade sanitária e se destinava também aos enfermos que, nos termos da lei, não podiam obter os recursos necessários à própria subsistência ou que eram portadores daquilo que a lei denominava de “estigmas impressionantes de lepra”. Em outros termos, o isolamento e a separação de pais e filhos ocorreu também em relação às pessoas já curadas, além de ter um viés de evidente estigmatização também da pobreza.

Somente em 1975, por intermédio do Decreto Presidencial 76.078, foi dada nova denominação à Divisão Nacional de Lepra e à Companhia Nacional Contra a Lepra, passando a ser, respectivamente, denominadas: Divisão Nacional de Dermatologia Sanitária e Campanha Nacional Contra a Hanseníase.

Em seguida, no ano de 1976, foi publicada a Portaria n. 165 do Ministério da Saúde que, além de abolir o termo “lepra” nos documentos oficiais, garantiu a oferta de mecanismos para diagnóstico e tratamento adequados em serviços públicos de saúde (e não mais em leprosários), com o objetivo de “[...] eliminar falsos conceitos relativos à alta contagiosidade da doença, à sua incurabilidade e à compulsoriedade da internação do doente”, tendo em conta que a hanseníase não se transmite por simples contato, sendo necessário contato permanente, predisposição para a doença e baixa imunidade. Além disso, a doença é totalmente curável, podendo não deixar sequela alguma, se diagnosticada precocemente e tratada de forma adequada.

O isolamento dos enfermos e a separação de pais e filhos foram caracterizados por episódios de tortura, privação ilegal da liberdade, abuso sexual, castigos físicos e negligência estatal em relação à readaptação das pessoas afetadas para que pudessem viver com autonomia. Tudo isso está registrado e documentado em documentos oficiais do Estado e no material audiovisual que integra a segunda parte deste relatório. Tais práticas configuram graves violações a direitos humanos, tendo sido responsáveis por danos físicos, mentais, emocionais, materiais e sociais que impactaram diretamente nos projetos de vida e deixaram lesões permanentes nos dois grupos de vítimas (pessoas afetadas pela doença e filhos separados) que, em interação com as barreiras sociais, configuram deficiência ao impedirem o exercício da cidadania, o que também se comprova pela narrativa das vítimas no material audiovisual apresentado neste relatório.

A deficiência, dessa maneira, é uma marca presente tanto nas pessoas afetadas pela doença e que não tiveram acesso a um processo de reabilitação, como também nos filhos que foram separados e submetidos à tortura e o abuso sexual, violando os deveres de reabilitação e superação do estigma assumidos internacionalmente pelo Brasil por ocasião da incorporação da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e também por ocasião da incorporação da Convenção Internacional contra a Tortura.

A deficiência, aliás, considerando o modelo biopsicossocial de deficiência, assume múltiplas características nesses grupos.

Nas pessoas atingidas pela doença, a não reabilitação é um fator que, em interação com as barreiras físicas, impede o exercício da cidadania por falta de acessibilidade. Além disso, considerando que ainda hoje o Estado brasileiro não conseguiu implementar uma política de eliminação desse estigma, o que poderia ser feito, por exemplo, através de campanhas públicas eficientes e discussão dessa história na formação de profissionais da saúde e do sistema de justiça, pessoas curadas ou em tratamento (e aptas para atividades laborais) enfrentam dificuldades para encontrar trabalho, muito por conta do preconceito que a sociedade ainda alimenta em relação à doença. Nessa mesma linha, é muito comum que mulheres em tratamento para hanseníase não consigam afastamento assistencial do trabalho e, do mesmo modo, não consigam emprego. Tal prática evidencia um preconceito enraizado e uma dimensão interseccional do problema (Cf. Peruzzo; Garcia, 2020; Peruzzo; Casoni, 2021), pois, por causa do estigma, as mulheres diagnosticadas com a doença normalmente são abandonadas pelos companheiros, assumindo sozinhas os cuidados da casa e dos filhos.

Do mesmo modo, em relação aos filhos separados e submetidos a tortura e abuso sexual, as lesões suportadas por eles vão desde surdez decorrente da tortura até lesões psíquicas ou psiquiátricas, perpetuando um sofrimento intenso nas vítimas. Não bastassem as sequelas físicas e emocionais diretamente decorrentes de tal política estatal, o sofrimento é majorado pela ausência de perspectivas de uma reparação integral, por exemplo, no âmbito do Judiciário, considerando que, desde 2019, os Tribunais Superiores no Brasil vêm consolidando o entendimento de que a pretensão de reparação dos filhos separados compulsoriamente de seus pais, com todos os danos decorrentes da separação, estaria prescrita.

Em outros termos, nas pessoas atingidas pela doença, a deficiência é consequência tanto do diagnóstico tardio que desencadeia lesões neurais, como dos métodos equivocados de tratamento (como o antigo isolamento obrigatório em “leprosários”), das torturas sofridas ou, ainda, da falta de reabilitação, o que acarretou lesões que desencadearam “impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, que, em interação com diversas barreiras, impedem sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”, conceito de deficiência da Convenção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência e da Lei Brasileira de Inclusão.

Se considerarmos que, ainda hoje, o Brasil possui altos índices de diagnóstico de hanseníase, como também considerável número de diagnóstico é realizado tardiamente e que entre agosto de 2020 e março de 2021 o Brasil ficou desabastecido da poliquimioterapia por não produzir o medicamento de forma soberana, todos os erros e danos do passado evidentemente se repetem na atualidade. Essa dependência evidencia, ainda, a importância de termos em conta o papel da cooperação internacional em direitos humanos, na medida em que problemas locais repercutem internacionalmente e vice-versa, justificando a preocupação com a ideia dos “novos direitos” (Peruzzo; Spada, 2018) e da busca global pelo acesso integral às condições básicas para uma vida digna.

Ainda hoje, como consequência do estigma social e da negligência estatal, o Brasil está entre os países com o maior número de casos da doença no planeta. Nas Américas, 93% dos casos de hanseníase são registrados no Brasil, somando 26.875 novos casos em 2017 e 28.660 novos casos em 2018, conforme apontado pela Organização Mundial da Saúde (2019).

Nos filhos separados, as principais lesões identificadas resultaram dos castigos físicos, do abuso sexual e de outros tipos de tortura sofrida nos educandários, preventórios, na rua ou em famílias substitutas para as quais foram enviados após a separação. O documentário “Filhos separados pela injustiça” (2017) é um dos materiais em audiovisual que registram essas práticas de tortura e a permanência e atualidade dos danos.

Peruzzo, P. P.; Casoni, L. F. Contribuições da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre violência contra a mulher: uma análise jurisprudencial. Revista Direito Público, v. 18, n.98, p. 94-122, 2021. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/5265. Acesso em: 27 abr. 2022. Peruzzo, P. P.; Garcia, I. A aplicação do conceito de discriminação racial nas Recomendações Gerais e Relatórios anuais do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial da ONU. Boletim Campineiro de Geografia, v. 10, n.1, p. 241-259, 2020. Disponível em: http://agbcampinas.com.br/bcg/index.php/boletim-campineiro/article/view/454. Acesso em: 27 abr. 2022. Peruzzo, P. P.; Spada, A. C . Novos direitos fundamentais no âmbito da Unasul: análise das agendas de Brasil e Venezuela à luz do direito à paz. Revista de Direito Internacional, v. 15, n.2 p. 339-352, 2018. Disponível em: https://www.publicacoes.uniceub.br/rdi/article/view/5060. Acesso em: 27 abr. 2022. Peruzzo, P. P. ., Silveira, S. M. L. ., Gonçalves, N. I. G. ., Flores, E. P. L. ., Santiago, K. T. ., Simbera, P. A. de C. ., Lima, M. A. de ., Salles, G. M. ., & Silva, L. V. C. da . (2022). Contribuição para o relatório temático da relatora especial das Nações Unidas para a eliminação da discriminação contra as pessoas atingidas pela hanseníase e seus familiares ao conselho de direitos humanos da ONU. Revista De Direitos Humanos E Desenvolvimento Social, 2, 1–31. https://doi.org/10.24220/2675-9160v2e2021a5791


Links interessantes:

http://www.morhan.org.br/sobre_hanseniase

https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/pessoa-com-deficiencia/acoes-e-programas/memorial-virtual-da-hanseniase-no-brasil